Bingo e os tormentos por trás da máscara de um ícone infantil

Podemos começar esse texto de duas maneiras: uma citando que a figura do palhaço não apenas é explorada na função da alegria e sim, por mais piegas que possa ser, esconde uma tristeza e que é ótimo também no elemento do terror. Para esse último quesito basta lembrar o personagem que amedronta o universo infantil em “It”, de Stephen King, obra literária que agora chega em nova versão às telas. A outra ganha um tom pessoal. No Festival de Cinema de Gramado de 1995, ao conversar com a atriz Maria Zilda e relembrar de “A Intrusa”, produção por ela estrelada em 1979 e dirigida por Carlos Hugo Christensen, ela me perguntou se eu sabia por onde andava o ator Arlindo Barreto (que com ela e José de Abreu completava o triangulo amoroso do filme baseado em livro de Jorge Luis Borges). Ninguém sabia de Arlindo, já convertido para a igreja batista. Mas o que talvez todos ignorassem é que durante alguns anos, ele havia animado as crianças do Brasil como o palhaço Bozo. Essa história agora é contada em “Bingo: O Rei das Manhãs”, filme de estréia de Daniel Rezende. O tom alegre está na máscara do personagem infantil, mas não se iludam, a tristeza e o terror aqui já referidos permeiam a narrativa.
O personagem virou Bingo no filme de Rezende por questões do uso de marcas. Assim como a Rede Globo, que recusou Arlindo tem o nome de Mundial. O SBT é TVP, a concorrente do horário na Globo, Xuxa, é Lulu e o Arlindo, vivido de maneira perfeita por Vladimir Brichta, é Augusto Mendes. Os conflitos do ator que não podia, por cláusulas de sigilo, ser revelado como o intérprete do palhaço famoso e campeão de audiência, com relações problemáticas com a ex-mulher atriz de novela (Tainá Müller) e o filho, e envolto em uma ciranda de drogas são fiéis à realidade. Gretchen é Gretchen (uma irrepreensível Emanuelle Araújo) mesmo e não teve problema em autorizar suas transas com o palhaço (permitam-se a trocadilhos). Daniel Rezende, que vem de uma carreira exitosa no Brasil e exterior como montador, assinou o roteiro com Luiz Bolognesi. Conforme a decadência enfileiradas nas carreiras de cocaína e o afundamento no álcool se pronuncia, o processo é acentuado de modo soturno pela fotografia de Lula Carvalho, criando momentos memoráveis. Leandra Leal como a produtora evangélica que casou com Arlindo-Augusto reforça os elogios à produção, assim como Ana Lúcia Torre que vive a mãe dele, na vida real a atriz Márcia de Windsor – a refinada jurada que só dava nota 10 no programa Flávio Cavalcanti. Querem mais? A trilha oitentista que tem artistas como Echo & the Bunnymen, Devo, Titãs, Ritchie, Metrô e Gretchen (é claro), entre outras pérolas. Vejam !