A ironia de Lebowitz em “Faz de Conta que NY é uma Cidade” garante o máximo em humor inteligente e crítico

O espectador não precisa conhecer a escritora Fran Lebowitz e nem Nova York para ter o maior prazer em assistir os sete episódios da série “Faz de Conta que NY É uma Cidade (Pretend It’s a City)”, que está disponível na Netflix em sete episódios que tem no máximo 30 minutos cada. Quando termina, além de ficar querendo muito mais, Fran será a melhor amiga dele, que também constatará que, mesmo que tenha ido diversas vezes à Big Apple, nunca terá estado na cidade que ela apresenta. Agora começa o difícil, como destacar alguns quesitos no universo que o documentário mostra na maioria em entrevistas de Fran com Martin Scorsese (falamos em genialidade), que também é diretor da atração e grande amigo da retratada, mas também em entrevistas antigas como Spike Lee, Olivia Wilde, Alec Baldwin e a maravilhosa Toni Morrison (1931-2019), primeira escritora negra a ganhar Nobel de Literatura, em 1993, e a quem o programa dedicado.
Gravado antes da pandemia em auditório, a americana de New Jersey, nascida em 1950 e radicada em N.Y desde os 19, responde às perguntas do público e Marty, assim que ela chama Scorsese. o cenário é dividido com a participação nos outros programas com as celebridades já citadas, na incrível maquete da cidade no Queens Museum, em um restaurante, e caminhando pelas ruas de Manhattan. E nessas andanças, ela (sempre com o seu sobretudo, calça jeans e botas) faz caras de espanto ao ver ao redor do Central Park um grupo de mulheres puxando cordas com pneus, ao que ela define como pagar uma fortuna para fazer a réplica de uma técnica de tortura. Com uma seriedade cômica entremeada com as gargalhadas suas, do público e, principalmente, a característica de Scorsese, ela vai falando – e, por que não, “destilando” seu sarcasmo inteligente. Neles estão o horror que tem pela região do Times Square, de ter sido taxista quando era muito garota, da juventude e das idades em geral, do metrô e as obras nele feitas e que não resultam em melhoras, da sua visão do esporte, do assédio que as mulheres comuns sempre sofreram – e que tomaram vulto após celebridades denunciarem – o que a fez nunca aceitar ser garçonete, sobre dinheiro, sobre a vida cara na cidade e o apartamento que comprou para abrigar a sua biblioteca de 10 mil livros, fala dos artistas que conheceu, que nunca gostou de Andy Warhol (1928-1987), para quem trabalhou quando ele editava a Interview Americana, de redes sociais, da arte e dos leilões (hilário!), de cigarros e do chamado “wellness” – o bem estar criado pelos milionários californianos e prolongar a vida (alucine de rir). E muito mais!
Esse humor corrosivo e falado de Lebowitz (ela parece muito com Woody Allen nisso) em nenhum momento é agressivo. Talvez o material adicional torne tudo ainda mais prazeroso. Ela diz da gravadora Motown e registra Stevie Wonder e Marvin Gaye (1939-1984) (com cena dele cantando ´I Want You´ ), assistindo o punk rock do New York Dolls, no clássico Max Kansas City, o amor pelo jazz em aparições do compositor, contrabaixista e pianista – e ativista- Charles Mingus (1922-1979), Duke Ellington (1899-1974), outro nome máximo do estilo musical, umm momento de Griffin Dunne em um táxi na kafkiana comédia “Depois de Horas” (After Hours), dirigido pelo próprio Scorsese, a cena do compositor e cantor francês Serge Gainsbourg (1928-1991) quando queimou 500 francos na televisão para protestar contra os impostos, o comercial de televisão que mostrava como a tartaruga Bert se protegia no casco em caso de uma explosão nuclear e crianças indo para debaixo das classes. E tem a participação de Fran como uma juíza em “O Lobo de Wall Street” (de Marty, é claro) e onde contracenou com Leonardo Di Caprio – e aí rende uma história que envolve o cigarro eletrônico dado para ela pelo ator e usado em um voo…
Se foi falado em Gainsbourg, é legal lembrar que a ex-mulher dele, a musa e linda Jane Birkin faz parte da trilha entoando “Nicotine” em assunto sobre o prazer de fumar de Fran. Mas a seleção musical de ” Faz de Conta que NY É uma Cidade” é um luxo, como Lebowitz, Marty e a Nova York imperfeita que desconhecemos (ou mesmo a que conhecemos).