“Roma”, de Cuarón, o Brasil militarista da época, o brega, a cozinha e Pedro de Lara

Cuarón dirige Yalitza
A obra-prima de Alfonso Cuarón, “Roma“, iniciou no Globo de Ouro, onde levou as estatuetas de Melhor Filme Estrangeiro e de diretor, a sua trajetória de premiações nesse ano de 2019. O filme mexicano é daqueles que merecem ser vistos diversas vezes (mesmo para os que não são adeptos de tal costume). Vale como conhecimento de fotografia (assinada pelo próprio e em preto e branco), roteiro, interpretações primorosas e a visão revisitada da infância de Cuarón. “Roma” é objeto de estudo, de uma humanidade que pode contar com prefixo “des” no início dessa palavra. E tem uma incrível semelhança com o Brasil no início dos anos 70, em que se passa a história na Cidade do México. E não falamos na turbulência política, que lá tinha o presidente Luís Echeverría enquanto aqui vivíamos a ditadura militar do general Médici (1905-1985). Mas vamos falar do contexto da trilha sonora com hits que fizeram parte daquela década em “terra brasilis”.
A Roma título se deve ao bairro Colonia Roma, de classe média alta, na Cidade do México. Os camburões da polícia militar e do exército andavam nas ruas também no Brasil. O som do afiador de facas ao passar na rua da residência da família do filme era comum nas grandes capitais do nosso país. Em um momento da primeira parte da trama se escuta no rádio da cozinha uma música que nos soa muito familiar (claro que estou falando para quem tem mais de 40 anos ou tem memória e conhecimento do cancioneiro brega dos anos 70), “La Nave del Olvido“, na voz de Jose- Jose. Mas para nós é “Espere um pouco, um pouquinho mais“, a versão popularizada na voz de Nélson Ned – ídolo das atrações televisivas de “domingo à tarde”. O rádio na cozinha é um símbolo muito importante. Não existia essa popularização entre as classes. O brega era brega, fosse na música ou em programas de televisão. Existia a expressão “ah, eu estava passando na cozinha e assisti – ou escutei“. Eram os mais desfavorecidos e a música considerada simples, piegas. Quando o personagem do pai, um médico, chega na casa, o carro está com o som de uma música clássica. Mas esse popular poderia ganhar um “status quo” conforme a ocasião. É o caso do réveillon quando na casa de campo, os convidados dançam em fileira a salsa “Corazón de Melón” (Hermanas Benítez), executada pela orquestra de Johnny Pacheco, mas um sucesso muito grande na voz do ícone Trini López e no Brasil dos anos 80 atingiu o grau máximo da breguice na versão “Coração de Melão” do cantor Nahim.
Mas então o que dizer de “Those were the days” (da britânica Mary Hopkin), no filme pela orquestra de Ray Conniff. No Brasil, o refrão “la la la la la la” virou o tema do jurado Pedro de Lara no Show de Calouros do programa Silvio Santos…”Pedro de Lara, la, la, la, la” (eu estava passando pela cozinha…). No mais, clássicos do pop americano como “Yellow River“, de Christie, e a melosa “Mamy Blue“, de Roger Whittaker. É uma nostalgia que pode ser trágica e emocional, como dita a personagem Cleo (Yalitza Aparicio Martínez), inspirada na empregada da família de Cuarón quando ele era uma daquelas crianças. Esse cara deve ser uma pessoa e tanto!